14 de abr. de 2013

Ouvidos ao coração

Um sujeito comum entrou no ônibus e viu a moça sentada no banco imediatamente à frente daquele mais alto, sobre a roda. Olharam-se firmemente nos olhos e ele sentou-se justamente no tal banco mais alto, atrás dela, que estava vazio.
E que olhar foi aquele! Sabe quando o tempo parece parar? Quando um segundo se prolonga por minutos? Então, aquele olhar causou esse fenômeno extra-físico. Sentiu um frio na espinha, um embrulho no estômago. O coração do pobre rapaz foi sacudido por uma espécie de tremor. Um raio cruzou-lhe os ventrículos de lado a lado, causando mesmo dor. Por mais despretensioso que fosse, qualquer homem naquela situação bambearia as pernas e sonharia. Aquele olhar...
Muito bonita, ela, de unhas feitas e perfumada, o tempo todo parecia incomodada com alguma coisa. Tentava vigiar-se, olhando de "rabo de olho", mas diante do observador implacável, era inútil o disfarce.
Por sua vez, o coração dele passara a gritar alto, numa agonia indescritível, exigindo uma atitude. Mas francamente, ele não tinha cacife pra uma iniciativa naquelas proporções. Tentou fingir que não sentia os apelos do órgão a quase saltar-lhe pela boca.
-Diga que estou aqui dentro! Diga a ela que a percebemos! Que precisamos dela! -vociferava através do peito.
Suava frio no meio daquela incompreensível discussão. Relutava. De onde vinha a conclusão de que seu coração sabia o que dizia se todo mundo sabe que coração não pensa?

Precisamente mais três pontos à frente, e a moça fez menção de saltar na parada seguinte.
-Não perca essa oportunidade! Pelo menos desta vez! Você viu bem o que disse o olhar dela! Fale alguma coisa ou não lhe deixarei em paz de tanto arrependimento! -insistia o coração de forma cruel, quase  ditatorial.
Na sua consciência, sabia que não haviam garantias. Uma mulher daquelas, ia querer o quê com um cara como ele, um estranho qualquer num ônibus qualquer? Certamente ia fugir de qualquer aproximação. Ainda mais dele, que sabia ser um absoluto desastre falante nessas horas.
-Não importa! Tente! -insistia  o coração.
Um sinal vermelho antes do ponto crucial parou o coletivo parecendo também tentar ajudar na situação, dando ao desajeitado algum tempo mais para pensar em alguma coisa. Nada de objetivo e revolucionário surgiu em sua mente limitada, desacostumada à essas pressões do mundo moderno. No fundo, era um lerdo. E ainda por cima, romântico. Um caso complicado.
Desse jeito -ainda que de forma inédita sob aquelas condições- puxou um velho bloquinho da carteira e uma caneta do bolso da blusa. Começou a escrever o mais caprichado que conseguia com o ônibus acelerando o motor, vibrando forte. Apesar do desespero, saiu mais ou menos o seguinte:
"Sou um pouco mais que este 'rostinho bonito' -detalhe que colocou o rostinho bonito entre aspas porquê de fato, era um sujeito meio mal acabado -apesar de tentar não se abater tanto por isso.
E continuou sincero:
"Acredite. (ou me deixe te provar isso.)
"Qualquer dúvida, me procure ou procure saber de mim... -e colocou ali o número do celular, o e-mail e o perfil na rede social.
E encerrou sem o menor gracejo:
Desculpe o susto deste pequeno bilhete."
Eis então que ela se levantou e puxou a corda do sinal. Esperando o veículo parar, aguardou bem na lateral do seu banco e novamente o olhou fixo nos olhos, como da primeira vez. Ouviu neste momento o seguinte instigar do coração:
-Esse é o sinal! Vai!
Atabalhoado, arrancou a folhinha e entregou à moça:
-Pra você. -falou sem conseguir dizer mais nada.
A moça quis tentar ler naquela confusão, olhou com desconfiança, sem entender, mas ele preferiu acreditar que poderia ser uma expressão de surpresa.
Ela tinha de saltar e assim o fez.
-Tentei... -pensou aliviado.
E o coração, outrora falante, nem parecia mais presente. Voltou a simplesmente bater como antes, comportando-se como tradicional órgão bombeador de sangue, quase calado, cínico, muito na dele. Na mente, perturbara-lhe somente a lembrança da moça bonita que levou-lhe o bilhete e a esperança, deixando-lhe em troca aquele olhar e uma incerteza.
Ele ainda conseguiu a observar pela janela, ficando pra trás, lendo o bilhete, mas não testemunhou as consequências do desesperado ato: se ela sorriu, se jogou fora, se guardou... Ninguém sabe no que deu. Até porquê o ônibus seguiu e a crônica teve de terminar.

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