27 de jan. de 2013

A Mulher Nua da Praça Seca

Mesmo não sendo nada demais, garanto veracidade a quem ler essa crônica as vésperas do carnaval. Talvez seja difícil acreditar, mas é a mais pura verdade e espero que outras testemunhas compareçam para comprovar o que digo, pois não é possível que só eu defenda a realidade dessa história.

Trata-se da mulher nua da Praça Seca, que pude vislumbrar algumas vezes. Se não a vejo todo dia, sigo na esperança de que não se trate de uma visitante ocasional e, sim, de uma moradora local, de algum condomínio do bairro, dos seus adjacentes, ou no mínimo que eu possa observá-la mais algum tempo, para lubrificar estas minhas retinas tão cansadas de secura. Em outros tempos, uns dez anos atrás talvez, ao vê-la, eu não pensasse apenas em lubrificar as retinas, no instinto de todo macho pretensioso e sem noção, que não percebe suas limitações, mas agora quase que me encontro no célebre dilema existencial do cachorro que corre atrás dos carros -se alcançar um deles, que vai fazer?- talvez eu pudesse conversar com ela, quem sabe? Se ela gostar das músicas "lado B" do Djavan, de cerveja, de sorvete, se leu o Pagador de Promessas ou Terras do Sem Fim, entre outras pouquíssimas coisas sobre as quais acredito (com todas as minhas forças) conseguir falar mais que cinco minutos sem entendiar alguém -e olhe lá.

Mas antes que os amados fiéis seguidores deste espaço pensem absurdos ou que acreditem ser o fato uma lorota simplesmente baseada numa crônica de João Ubaldo Ribeiro, devo esclarecer que esta mulher também - assim como a do João- não aparece propriamente nua. Mas, como é fato comum, aparece mais provocante do que se estivesse nuinha em pelo. A primeira vez em que me despertou a atenção, eu estava na minha rotineira ida à um dos supermercados do mesmo bairro, no qual até pouco tempo nutria admiração platônica por uma simpática operadora de caixa e onde compro perfeitas inutilidades, úteis apenas para minhas crises de balzaquiano metido à besta ou para tentar adoçar a vida de meu velho avô. Estava eu a refletir sobre se ia comprar sorvete de creme ou doce de leite pastoso com coco, quando, causando uma leve aragem e roçando levemente no meu braço, ela fez sua passagem suavemente perfumada, entre mim e uma prateleira de ração. Não estava pelada, como já disse. Estava com um vestido de malha leve, florido, vermelho e branco salgueirense, sem, tenho certeza, nada por baixo. Nua com a mão no bolso. Não fiz um exame de tato, é claro, mas ela estava obviamente com o vestido em cima da pele, sandálias rasteiras e só.

E é, amigos queridos, uma moça como hoje raramente se vê por aí. Eu, orgulhosamente, sou do tempo da "mulher violão, cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina, vem cá, meu coração", nas coerentes e imortais palavras do rei Luiz Gonzaga. Hoje a malhação, na mania desagradável de sumir com os famosos (e, se bem dosados, charmosos) “culotes”, tirou as cinturas das mulheres e as tornou retângulos trapezoides socados, tanto que a maioria das "boazudas", "gostosas" e "panicats" do momento só posa para fotos de salto muito alto, dobrando a cintura, fingindo ostentar o que não têm. Ela não. Ela tem cintura e não precisa sequer rebolar conscientemente para enganar os fãs de plantão, como eu. Esguia, mignon, ombros estreitos e delicados, braços finos, pernas magníficas e —sem dúvida— sem nada por baixo do vestido. Eu, que já estava seguindo para o caixa 4 da minha simpática operadora, inventei diversos pretextos e comprei várias outras inutilidades, somente pelo esticamento do prazer de vê-la passar, como um anjo onírico, diáfano, entre pacotes de papel higiênico e latas de conservas. (Poético isso, não?) Ela estava "nua" e, quando me dei conta — isto porquê a observava com tamanha discrição que ainda conseguia me concentrar na dúvida atroz de levar leite condensado para rechear pães franceses ou Doritos sabor nacho — ela sumiu.

No caminho de volta, vim pensando que talvez tivesse bebido demais na noite anterior, que muito provavelmente estivesse tendo alucinações, oriundas do batuque que havia ouvido no ensaio da Portela. Sim, era isso. Só podia ser isso.
Mas não, dois dias depois, por volta das sete da noite, seguia em direção ao caixa eletrônico de um centro comercial próximo, indo pegar uns trocados vivos para inutilidades emergenciais, quando me deparo com ela outra vez. Novamente estava com um vestido daqueles, agora completamente branco. Era — sem nenhum exagero — de tecido mais fino que a malha da vez anterior e de novo ela estava inocentemente sem nada por baixo. Não era possível que ninguém notasse, porque se via tudo, cada protuberância e cada saliência livre de qualquer marca sutil, e o mais sensual de tudo é que em seus gestos não pareciam conter qualquer intenção de mostrar mínimo traço de sensualidade.
Corri o olhar à minha volta, para ver se alguém mais partilhava do mesmo embasbacamento viril que me assolava, mas ninguém parecia notá-la além de mim. E, quando passamos um pelo outro, ela me esboçou um leve sorriso. Um sorriso para um olhar familiar das vizinhanças, é claro. Nunca estive com essa bola toda, mas de qualquer forma, um sorriso da deusa nua eu ganhei.

Tornei a sentir-me com demência senil, até porquê se passaram alguns dias mais sem que eu a visse outra vez. Sim, claro, eu estava tendo alucinações, era o resultado de dias não muito regrados e desperdiçados em atividades pouco construtivas fora do horário de bom rapaz. Conversei sobre o caso com alguns conhecidos da área -inclusive um guarda municipal que fiscaliza o sinal da Barão com a Cândido Benício-, tendo todos me ouvido caridosamente, mas confessaram, nenhum deles jamais ter visto a moça. Simularam elegantemente acreditar no que eu contava. Alguns inclusive, fingiram empolgação com a possibilidade de cruzar com ela pelo bairro -não literalmente, é claro.
Contudo, a justiça foi feita e o momento de comprovação chegou. Encontrávamos em bando de cinco ou seis no ensaio do "melhor" -leia-se, único- bloco carnavalesco no Valqueire -bairro vizinho, no qual moro-, quando, de súbito, o improvável acontece: ei-la que surge! "Nua novamente", com um vestido parecido com os outros, azul céu, costas de fora, só que desta vez conduzia um enorme labrador negro pela coleira. Imaginem a cena inusitada... O bloco seguindo numa direção e ela, ao largo, na contramão da massa. Como não percebê-la?

— É ela, é ela! — indiquei com os olhos arregalados e orgulhosos, esfregando as mãos à espera de um embasbacamento coletivo dos presentes.

Mas, entre esses “é ela” e sua passagem fulgurante, correu talvez cinco segundos e a mulher sumiu pela esquina das Rosas, em direção à Intendente. Incrédulos de pouca fé -é redundância mesmo- os comparsas presentes não se dignaram a largar a boca de suas latas de cerveja e esticar o pescoço para vê-la passar, desaparecendo à distância. Aliás, eu mesmo, desanimado com a incredulidade amiga, tampouco insisti em observá-la. Talvez tenha sido minha mediunidade se apresentando, ou ilusão de ótica dessa época que transborda sensualidade, não sei bem. Sei que conformei-me. Melhor seria dar um tempo, aproveitar o carnaval, tirar umas férias das palavras escritas, se eu conseguir claro. Antes que eu fique louco. Assumo que ando precisando.

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