6 de dez. de 2011

A Terapia do Doce

No domingo seguinte em que minha avó materna faleceu, em 2003, tomei a decisão de visitar a casa de meu avô. Não tinha muito o que fazer. O sepultamento havia acontecido dias antes e eu estava lá para encontrar e também levar algum conforto. É um momento de fortalecimento, da consolação através da proximidade.
Eu não sabia bem como lidar com aquilo, apesar de já ter lá meus 25, 26 anos na época. Até então, ninguém tão próximo do meu convívio havia partido e tive de aprender naquela hora, a dizer as palavras certas, a parecer ser forte sem ser frio, a tentar suturar de alguma forma aquela ferida coletiva.
Sem conseguir fazer planos de como me portar naquele dia, fui indo. Imaginava apenas a dureza que seria ver aquelas fisionomias tristes. Minha avó morava com meu avô e uma tia. Sem dúvida, havia um buraco, uma ausência física, um silêncio triste, pois faltava alguém importante por ali.
E sem qualquer idéia do que encontraria dali alguns minutos mais, percebia, passo pós passo, o endereço se aproximando. Foi quando olhei de relance para o balcão de doces de uma padaria próxima. Os doces, de bela aparência, davam a entender que também estavam frescos e saborosos. Pensei comigo: "Como seria bom um doce desses agora..."
E se eu achava aquilo, havia o risco de mais alguém na mesma situação, também achar. Resolvido.
Pedi uns dez pra viagem. Olho de sogra, brigadeiro, quindim, bomba, mil-folhas... 
-Dois de cada, por favor.
O balconista parecia advinhar o meu momento, pois embrulhou-os com um capricho tão grande que me emocionou por dentro. Mereceu a gorjeta.
Voltei à caminhada com o embrulho numa sacola plástica e cheguei ao portão da casa de meu avô. O momento estava ali. Enchi o peito, respirei fundo e entrei pela escadinha. Abri a porta e encontrei os dois na sala, sentados, em silêncio revelador. Os olhares na realidade eram ainda mais duros que os imaginados. As lágrimas haviam secado, mas a dor permanecia intacta.
Dentro do possível, cumprimentei-os como de costume. Agora, com certo pesar, mas tentando manter acesa a segurança de quem acredita que a vida segue seu rumo. Segurança de que os fins são apenas estados temporários. (E olha que naquele tempo eu nem tinha tanta certeza disso quanto tenho hoje...)
Os abraços e os beijos foram distribuídos com mais intensidade e junto deles, pensamentos desejosos de confiança diluídos.
Coloquei a sacola sobre um móvel e me pus a abrir o embrulho de dentro. Minha tia ficou curiosa:
-O que você trouxe aí?
Sem qualquer planejamento, saiu o seguinte:
-Doces... pra adoçar a vida!
E não é que funcionou? Vi um brilho nos olhos deles... Parecia a alegria tentando ressurgir debaixo de todo aquele instante de um sofrimento que, de tão próximo, quase dava pra tocar.
Vi um tímido sorriso em ambos e meu velho avô vencendo a dor. E ele raramente dá o braço a torcer:
-"Adoçar a vida"... Só você mesmo...
...
E desde então, sempre que a coisa aperta, sempre que sei que o momento vai ser duro, busco os doces pra amenizar o ambiente. Uma caixa de bombons que seja. E, pro meu alívio, sempre funciona. Porquê nem sempre sei o que dizer e, quando sei, nem sempre serve pra todos.
...
Têm alguns meses e um amigo dos tempos de escola se foi. Trinta e cinco anos, de infarto fulminante. Nessa idade, não há salvação. Fumante e sedentário até o talo. Morreu com a filha de seis anos no colo, no sofá. Um era a paixão do outro, mas o egoísmo dele não o deixou ver os riscos que corria. Até porque, por pior que se viva, quem vai temer a morte aos 35 anos? Mas aconteceu e não foi com o vizinho.
Já estou (meio) acostumado a ser chamado pra esses "programas". "O bicho pegou? Chame ele", "Alguém está indo pro hospital sozinho? Liga pra ele que ele vai junto", "Passou mal? Dá pra trazer o aparelho de pressão?". Não que eu goste ou desgoste. Não que eu faça de absoluta boa vontade, confesso. Ainda não estou nesse estágio. Mas é que se eu puder fazer e não fizer... Hum... só posso dizer que é complicado.... Um dia, quem sabe eu melhore isso?
No caso desse amigo, não pude ir ao velório mas, no dia seguinte, sua esposa insistiu muito para que os amigos mais chegados aparecessem em casa. Nessas horas, os amigos fazem a falta não parecer tão grande quanto é. Alivia a saudade no momento mais recente da ausência.
Por via das constatações, resolvi passar no supermercado e, mesmo sem poder, comprei um pouco de doces com embalagens bem coloridas, daqueles que todo mundo gosta.
Cheguei trazendo o mesmo olhar dos já presentes. O olhar de quem, apesar dos pesares, deseja que tudo passe logo, que o tempo ofereça o quanto antes sua ação cicatrizante. Nos olhos da jovem esposa, a lágrima contida e o olhar sem poder se fixar muito no ambiente. Tudo era o retrato da recordação de quem, até poucos dias atrás, ainda estava ali.
Mas a pequena filha não parecia nada bem. Febril e sempre angustiada, perguntava do pai o tempo todo. Certamente que não entendia bem o que tinha acontecido, mas  testemunhou a crise dele e viu toda a correria que se deu depois. O desespero da mãe, a chegada dos socorristas, a ambulância... A cabecinha dela estava a mil.
Chamei-a com carinho, num canto da sala:
-Lu... trouxe um negócio pra você...
A baixinha levantou o olhar na minha direção e mesmo chorosa perguntou o que era. A mãe, vendo o embrulho de doces, contruibuiu com um sutil ar de alegria:
-Ih, Lu... olha só o que o tio Flávio trouxe pra você, meu amor...
Um sorrisinho leve se abriu na baixinha que veio correndo olhar curiosa dentro da minha bolsa. E quando o pacote saiu e se abriu, vi mais uma vez aquele brilho lá dos olhos do meu avô e da minha tia.
Quando tudo parece sem cor e sem luz é preciso adoçar a vida...
E novamente deu certo.
...
Então é isso: quando o amargor da dor aparecer num desses momentos mais críticos, espere um pouco a poeira baixar e leve o silêncio, o carinho e um doce qualquer.
Isso, todo mundo pode fazer.

6 comentários:

  1. Eu acho tão dificil se manter calmo, alias eu perco a calma por qualquer coisa, se alguém tiver alguma receita de como se manter calmo, eu ficaria muito grato. É uma situação dificil essa sua, e evidentemente devemos fazer exatamente o que você escrever ... mas, não é todos que conseguem!

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  2. Cleber, e me diga quando se desesperar tem alguma utilidade? E ainda piora tudo.
    Tudo que não serve pra nada, deve ser evitado.
    Eu sempre fui um sujeito sem muitas estribeiras, mas quando vi que isso não ajudava, tive que mudar de postura e conduta.
    É claro que às vezes tremo por dentro. Sou humano, tenho sangue nas veias, sou emotivo. Mas daí a entrar em desespero, vai muito além.
    Receita não tem. É exercício de raciocínio. É buscar as soluções que podem resolver o problema, em vez de só pensar no problema.

    Abraço!

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  3. Tão bonito o teu texto, Flávio. E adoro mil-folhas!

    ;)

    Beijos.

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  4. Luna, está cada vez mais difícil achar um mil-folhas decente por aqui...
    Obrigado pela presença de sempre.
    Beijos!

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